Belluzzo: Brasil hoje pratica o vira-latismo reverso

O presidente americano, Joe Biden, armou outra encrenca global ao sugerir a quebra de patentes das empresas farmacêuticas que produzem as vacinas anti-Covid-19. A medida foi saudada por uma centena de países, mas foi recebida com reticências na União Europeia de Frau Merkel e Monsieur Macron. O ministro brasileiro das Relações Exteriores criticou a sugestão do presidente americano, em mais uma manifestação do vira-latismo reverso, como bem definiu Arthur Araújo em artigo publicado no site da Fundação Perseu Abramo. O bolsonarismo é sabujo dos Estados Unidos, aquele país imaginado pelas mentes dos invasores do Capitólio. O Brasil já foi mais lúcido, ousado e civilizado em outros tempos. Tempos que presenciaram a ação do então ministro da Saúde José Serra advogar e conseguir a quebra de patentes das medicinas de combate ao HIV. Os profissionais da saúde são unânimes em reconhecer a importância dessa ousadia para a sobrevivência dos infectados pelo vírus da Aids. São muitos os estudiosos que investigam a propriedade intelectual e suas consequências para o bem-estar dos cidadãos que vivem e sobrevivem nas engrenagens do capitalismo contemporâneo. A produção de conhecimento, crescentemente coletivizada nos formidáveis aparatos da ciência e da inovação, é apropriada pelos detentores dos direitos sobre os ativos imateriais. Esses sistemas de pesquisa são financiados e garantidos pelo Estado, mas seus resultados são apropriados privadamente pelas grandes corporações globalizadas, que se valem das patentes reguladas pelas leis de propriedade intelectual. Ao examinar essas relações nos Estados Unidos, Mariana Mazzucato desmascara o mito dos “gênios da garagem” e reduz a pó as lendas marqueteiras que celebram o papel do venture capital. Mazzucato descreve minuciosamente o roteiro para o sucesso da Apple de Steve Jobs e seus iPads e iPods. A ação do Estado não só garantiu o abastecimento do capital paciente e capaz de encarar os enormes riscos da inovação, como também ajudou a coordenar as relações entre a grande empresa integradora e seus fornecedores. Mazzucato apresenta o caso de um novo fármaco que gera receitas de mais de 1 bilhão de dólares por ano. Esse medicamento é comercializado pela empresa Genzyme. É um medicamento para uma doença rara, que foi desenvolvido inicialmente no National Institute of Health. A dosagem de um ano custa mais de 350 mil dólares. Embora a legislação dê ao governo o direito de vender tais medicamentos desenvolvidos à custa do dinheiro dos contribuintes por preços “razoáveis”, os formuladores de políticas nos Estados Unidos não exercem esse direito. “Os custos do desenvolvimento desses medicamentos são socializados, enquanto os lucros são privatizados. Além disso, alguns dos contribuintes que financiaram o desenvolvimento do medicamento não podem comprá-lo para seus familiares, pois não têm condições financeiras.”
A bolada paga pelas grandes farmacêuticas aos acionistas foi 14% maior que os 544 bilhões de dólares gastos em P&D
Em artigo publicado no site Project Syndicate, o economista Joseph Stiglitz faz uma avaliação positiva da proposta de Biden para as vacinas. Ele diz que, no fim de abril, apenas 1,2 bilhão de doses haviam sido produzidas em todo o mundo. “Nesse ritmo, centenas de milhões de pessoas nos países em desenvolvimento permanecerão não imunizadas pelo menos até 2023. É, portanto, uma grande notícia que o governo do presidente dos EUA, Joe Biden, tenha anunciado que se juntará a outros cem países que buscam uma renúncia emergencial das regras de propriedade intelectual (IP) da Organização Mundial do Comércio. Essas regras vêm permitindo a monopolização das vacinas. A remoção temporária dessas barreiras criaria a segurança jurídica que os governos e os fabricantes em todo o mundo precisam para aumentar a produção de vacinas, tratamentos e diagnósticos. A pressão sobre a administração Biden para reverter esse bloqueio autodestrutivo tem crescido, ganhando o apoio de 200 laureados com o Nobel e ex-chefes de Estado e de governo (incluindo muitas figuras neoliberais proeminentes), 110 membros da Câmara dos Representantes dos EUA, 10 senadores dos EUA, 400 grupos da sociedade civil dos EUA, 400 parlamentares europeus e muitos outros. A escassez de vacinas contra a Covid-19 em todo o mundo em desenvolvimento é em grande parte resultado dos esforços dos fabricantes para manter seu controle e lucros de monopólio. Pfizer e Moderna, fabricantes de vacinas extremamente eficazes, recusaram ou não responderam a numerosos pedidos de fabricantes farmacêuticos também qualificados que buscavam produzir suas vacinas. As corporações farmacêuticas estão empenhadas principalmente em seus ganhos, não em saúde global. Seu objetivo é simples: manter o máximo de poder de mercado pelo maior tempo possível, a fim de maximizar os lucros. Nestas circunstâncias, cabe aos governos intervir mais diretamente na resolução do problema de fornecimento de vacinas.Na mesma toada, o economista William Lazonick estuda o descompasso nos Estados Unidos entre o empenho público para financiar as pesquisas na área da saúde e a apropriação ferozmente privada dos resultados financeiros. A Pesquisa e Desenvolvimento de medicamentos é um esforço muito dispendioso e altamente incerto, e as empresas farmacêuticas estabelecidas deveriam reinvestir os lucros para financiar esse processo de inovação. “No entanto, muitas das maiores empresas farmacêuticas dos Estados Unidos usam todos os seus lucros, e em alguns casos muito mais que seus lucros, para distribuir dinheiro aos acionistas. As famílias pagam caro pelos medicamentos para que o dinheiro seja utilizado para recompra das próprias ações e farta distribuição de dividendos. Entre as 466 empresas listadas publicamente no índice S&P 500, as 18 farmacêuticas acumularam lucros de 588 bilhões de dólares entre 2009 e 2018. Essas empresas gastaram 335 bilhões nas recompras de ações e 287 bilhões em dividendos. As prebendas aos acionistas foram 14% maiores do que os 544 bilhões que dedicaram aos gastos em Pesquisa e Desenvolvimento.” O grupo tem uma participação de 3,9% no total de 466 empresas, mas embolsou 8,5% do total de recompras e 9,3% dos dividendos. As recompras de ações mais os dividendos do setor farmacêutico, calculados sobre os lucros acumulados, somaram 106%. Assim, as oferendas aos acionistas daquelas 18 empresas superaram por larga margem as das demais listadas no S&P 500. No período 2009-2018, essas pobretonas recompensaram seus acionistas com 92% sobre os lucros acumulados. Grandes companhias farmacêuticas são grandes em fazer distribuições aos acionistas. Artigo Original

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By ecocut

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