Eu passei entre a vida e a morte durante muito tempo. Não me lembro muito dessas coisas, só sei que era uma situação muito difícil. Sentia muitas dores e não conseguia falar, as pessoas não me entendiam. Só conseguia superar essa dor com morfina. Chegou um ponto em que me dei conta que não podia continuar tomando morfina, porque eu ia me viciar e seria muito complicado, mas ao mesmo tempo eu não tinha mais posição pra ficar. Como já tive câncer, eu tenho só parte do pulmão esquerdo, então eu não podia virar pro lado esquerdo, e com as pneumonias, o meu pulmão direito também estava comprometido. Eu tinha fisioterapia e fonoaudiologia todos os dias, mas era uma coisa muito levezinha pra eu poder voltar a me mexer, voltar a falar. Eu fiquei muito tempo com aparelho pra poder voltar a falar, e eu não podia ficar muito tempo com o aparelho. Muitas vezes eu sentia que não teria condições de continuar a lutar pela vida. Fiquei no hospital até início de agosto. Teve um período que eu fui pra um quarto. Fiquei menos de uma semana no quarto. Fiquei mal e voltei pra CTI. Depois fui pro quarto de novo, aí consegui depois de um certo período voltar pra casa. Eu não precisaria ter passado por tudo isso. Passei por tudo isso porque eu peguei covid no hospital. Ou seja, tu não tinhas mais segurança nenhuma de ir ao hospital, que eu fui por um outro motivo, não foi pela covid, acabei ficando lá por 9 meses e até hoje estou em condições precárias. Nós temos que fazer esse debate no Brasil. Precisamos responsabilizar as pessoas que levaram a isso, nós todos sabíamos que a pandemia era uma coisa séria, que ela ia infectar muita gente, que ela ia hospitalizar muita gente, que ia matar muita gente, mas não precisava ser nos níveis que foi. Ou seja, teria muitas mortes evitáveis, muitas pessoas que não precisariam ter sido contaminadas e hoje estão com sequelas. BdFRS – As sequelas permanecem? Augustin – Até hoje não caminho. Continuo tendo alimentação só por sonda. Eu tenho enfermagem 24 horas por dia, e mesmo assim é difícil. Eu tenho fisioterapeuta que vem todos os dias na minha casa. A fonoaudióloga vem de segunda a sexta, e tenho acompanhamento psicológico. Mas tudo isso é insuficiente e absolutamente não te dá segurança nenhuma. Hoje eu não tenho segurança que eu vou voltar a caminhar, que eu vou voltar a comer ou a beber. Existe um grande número de pessoas que saiu da covid que é dado como recuperado e não tá recuperado coisa nenhuma. O recuperado como é chamado nas estatísticas oficiais é aquela pessoa que não está mais com covid, que não está mais transmitindo a doença, mas tem toda uma série de sequelas que são extremamente graves e que atingem as pessoas, tanto física como mentalmente. BdFRS – Tu és o presidente do Conselho Estadual de Saúde do RS. Sempre lutou por mais recursos pra Saúde Pública. Hoje, mesmo debilitado, continua nessa luta pela aprovação de recursos pro Orçamento do estado pra atender as vítimas da covid. O que representa essa luta? Augustin – Antes da covid eu era o presidente do Conselho Estadual de Saúde (CES/RS). Nós temos eleição a cada dois anos. No início de novembro do ano passado, foi inscrita uma chapa pra recomposição da mesa diretora. No dia da eleição, eu era o único candidato a presidente, mas eu estava entubado e fui reeleito intubado. Eu não tinha nem como renunciar. Então acabei ficando presidente, mas afastado.Eu passei entre a vida e a morte durante muito tempo. Não me lembro muito dessas coisas, só sei que era uma situação muito difícil
Agora no início de novembro, eu voltei a acompanhar de forma virtual algumas reuniões da mesa, algumas atividades. E propus a criação de um Comitê em Defesa das Vítimas da Covid. Por que isso? Nós temos no RS, pelos dados oficiais, 1 milhão e 400 mil pessoas que foram atingidas pela covid, mas todos nós sabemos, todas as pesquisas mostram, que tem no mínimo 30% a mais do que os números oficiais de pessoas que foram contaminadas. Então nós vamos ter 1 milhão e 800 mil pessoas gaúchas que foram contaminadas pela covid e que tem algum tipo de sequelas. Enquanto eu ainda estava trabalhando de forma virtual no conselho, nós discutimos o Plano Estadual de Saúde que já devia ter sido aprovado a mais tempo, mas atrasou e foi discutido só no último período. E lá já estava previsto, inclusive por determinação do Ministério da Saúde, que os planos estaduais e municipais de saúde tinham que ser revistos e incluídos a questão da covid. Essa era uma constatação bastante óbvia. Em 2020, o CES passou discutindo com todas as regiões do estado o Plano Estadual de Saúde, e todos os relatos que nós recebíamos é que tinha boa parte da assistência à saúde, seja atenção especializada, exames especializados, cirurgias, todas elas estavam suspensas em função da covid. BdFRS – Qual a situação da saúde no Rio Grande do Sul? Augustin – Nós tivemos um agravamento da situação na saúde do estado. E a covid só piorou ainda mais a situação. Nós estamos vivendo hoje a seguinte situação, nós não temos os recursos necessários para efetivar um amplo atendimento às necessidades de saúde da população do RS. O orçamento para o ano que vem, embora nós tenhamos colocado no Plano Estadual de Saúde que tinha que ter programas especiais, multidisciplinares, para a covid, não tem recurso nenhum desses no orçamento do estado. Então o conselho começou um movimento, foi criado um Comitê em Defesa das Vítimas da Covid. Estamos chamando toda a sociedade gaúcha a participar desse comitê, e encontrar recursos através de uma das medidas, que é uma ação junto aos deputados, para fazer uma emenda completando os 12% previstos na Constituição Federal. O Estado deve destinar 12% para a área da saúde pública, e só está destinando 7,74%. Está faltando 4,26% pra chegar aos 12%. E nós estamos querendo que esses recursos sejam destinados para a recuperação das pessoas com sequelas da covid, que é uma questão extremamente necessária.Nós vamos ter 1 milhão e 800 mil pessoas gaúchas que foram contaminadas pela covid e que tem algum tipo de sequelas
Eu posso comparar os números da pandemia no RS e no Brasil, a números de guerra. O grau de destruição que fez essa pandemia. Não precisaria ser isso, nós tínhamos todas as condições de fazer um enfrentamento de forma racional, de forma científica, fazendo isolamento social, testagem maciça, vacinação, isso tudo não foi feito. Ao contrário, toda a política pública, seja em nível federal, seja em nível estadual, e de boa parte dos municípios, foram políticas genocidas, e isso produziu números de guerra. Nós estamos com uma população gaúcha e brasileira com sequelas muito grandes da covid. Os traumas de guerra talvez não sejam tão fortes como os traumas da covid. Então há uma necessidade de que o conjunto da sociedade dê conta desse problema, porque isso não é falado, isso não é discutido. Se nós não conseguirmos enfrentar isso, as consequências serão muito danosas pra todos nós. Quantos trabalhadores deixaram de trabalhar? Quantas famílias perderam as pessoas que garantiam a renda? Nós temos no Brasil 120 mil órfãos da covid, e assim por diante, ou seja, os números são todos eles assustadores. Então nós temos o dever de fazer esse enfrentamento, conseguir recursos, fazer o que já devia ter sido feito, uma reestruturação econômica, como é feito em qualquer guerra que ocorre. E nós estamos fazendo isso, nós precisamos vacinas, nós precisamos testes de covid, nós precisamos isolamento social. A pandemia está voltando, o ômicron tá se espalhando pelo mundo. Até agora a gente não sabe o grau da letalidade dele, mas essa pandemia não encerrou, e nós temos que reestruturar as nossas atividades econômicas, pedindo garantia à saúde de toda a população. Augustin – Eu estou tendo toda a assistência que é possível, ela é cara, eu estou pagando. Eu sei que muita gente não tem as mínimas condições pra ter essa assistência. Então nós temos que juntar as pessoas, as entidades, pode entrar no comitê, pode entrar na Avico, que é a associação das vítimas da covid, ou na Vida e Justiça. As entidades e as pessoas têm que se juntar, e vamos tentar construir alternativas. Qual é a alternativa que temos? Não sei, mas vamos ter que lutar, e pra isso as pessoas têm que se dispor a ir pra luta. A dor é grande? É grande, eu não sabia se eu ia estar vivo, e muitas vezes eu não sei se eu vou conseguir me recuperar. Eu mesmo na cama estou participando do que eu posso, da forma que eu posso, pra poder ajudar a construir essas alternativas.Eu posso comparar os números da pandemia no RS e no Brasil, a números de guerra. O grau de destruição que fez essa pandemia
No final de outubro, teve a plenária nacional da CUT, eu sou membro da executiva nacional, eu não pude participar, mesmo sendo virtual, eu optei por não participar porque eu não tenho condições de ficar muito tempo numa reunião, eu não tenho força física pra isso, e nem emocional. Eu fiz uma mensagem de um minuto e meio mais ou menos, essa mensagem teve uma grande repercussão, e na minha avaliação ela teve uma grande repercussão porque eu na cama, estava chamando a CUT a lutar pelas pessoas atingidas pela covid. A mensagem que eu posso deixar, é essa disposição que eu tenho demonstrado, mesmo na cama, estou lutando pra transformar esse país. É preciso fazer mais matérias sobre isso com mais pessoas, porque eu não tive o que muitas pessoas tiveram, a desassistência. Eu tive assistência, mas eu conheço várias pessoas que não tiveram assistência, ou tiveram uma assistência ruim, e tiveram consequências danosas. Muitos morreram por falta, não tiveram respirador, tiveram sequelas muito grandes. Eu tive assistência, e mesmo assim eu estou do jeito que eu estou, isso mostra a gravidade dessa doença. Agora, nós temos que exigir dos poderes públicos as suas responsabilidades, e nós temos que cobrar as pessoas que puseram esse genocida no Brasil, tem que pagar por isso, nós temos que cobrar essa conta de quem o produziu. Nós temos que exigir a reparação de quem, a justiça aqueles que produziram esse caos.A mensagem que eu posso deixar, é essa disposição que eu tenho demonstrado, mesmo na cama, estou lutando pra transformar esse país
[learn_press_profile]